quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Entrevista com um paciente terminal



Ofereço a seguir um resumo da entrevista divulgada pela BBC de Londres, dez dias depois de ter falecido uma mãe de três filhos, que sabia que ia morrer em breve devido a um câncer inoperável.
- A senhora acha que o médico fez bem em dizer-lhe que vai morrer e que lhe resta pouco tempo de vida?
- Estou extremamente agradecida a esse mé­dico. Talvez em outros casos não fosse o mais acertado. Mas quanto a mim, sempre esperei que os médicos me fizessem este favor. Antes da morte de meu pai, passamos os seis últimos me­ses envolvidos numa rede de mentiras. Acredite, isso foi a coisa mais terrível e penosa que me sucedeu na vida. Meu pai era um homem excelente, um perfeito cristão, saberia acolher a informação com paz e nós não teríamos vivido aqueles seis meses de forma tão atroz.
- Aqui estamos, a senhora e eu, frente a frente. A senhora sabe que vai morrer dentro de pouco tempo e eu sei que a senhora sabe. Posso perguntar-lhe o que sente, agora que se aproxi­ma o desenlace?
- Bem. O senhor já passou uma noite inteira trabalhando? Apossou-se do senhor, alguma vez, uma ideia maravilhosa que o impedia de dormir e o obrigava a passar a noite escrevendo? Experi­mentou alguma vez uma paixão tão forte que o obrigasse a passar a noite inteira à janela vendo a lua descer no horizonte? Bem, se o senhor já fez alguma destas coisas, compreenderá a impressão que se sente quando vem a escuridão e o mundo se cala. Terá conhecido esses momentos notáveis entre as duas e as quatro da manhã, em que o corpo está em repouso, mas o espírito desperto. Percebe-se a verdade, a escuridão dissipa-se e a luz volta. Para mim, pessoalmente, a morte nun­ca foi outra coisa senão a passagem de um dia para outro.
- Agora que se aproxima a morte, o que é que a senhora mais teme?
- Não temo o desconhecido. Tenho três fi­lhos cujas idades vão dos treze aos dezenove anos. Eles são quase toda a minha vida. Mas co­mo cristã que sou, sei que só morremos quando Deus quer e não em outro momento, e que, se Ele me chama, Ele velará por eles. Então... isto, no fundo, não é tão espantoso.
- A senhora sente algum pesar pelo tempo perdido ou pelas coisas que teria podido ou devi­do fazer?
- Claro que sim. Mas olhe, sempre achei que a melhor coisa era sentar-se ao sol e dar graças a Deus pela sua Divindade. No colégio, quando era pequena, a Irmã dizia que, se queríamos avaliar uma coisa no seu justo valor, era preciso perguntarmo-nos como consideraríamos essa coisa no nosso leito de morte e dizer: «Se eu morrer esta semana, tal ou qual coisa teria sido importante?» Estas ideias dão uma excelente escala de valores quando se pensa nos amigos, no trabalho ou seja no que for. Agora, em suma, pesa-me não ter re­zado bastante e não ter amado bastante.
- Que entende por «não ter rezado bastan­te»? Porque sem dúvida a senhora rezou muito.
- Mas, diga-me, o que é que o senhor enten­de por rezar?
- Seria melhor que a senhora mesma o dis­sesse...
- Ensinaram-me que a oração consiste em elevar a alma e o coração a Deus. À medida que os anos foram passando, percebi que orar é des­pojar-se de si mesmo, de todo o seu ser, até que não fica na alma senão uma zona de paz, que se oferece ao Senhor e que Ele preenche com a sua bondade, a sua divindade. Percebi que a ação deve proceder da oração; e que toda a ação que não tenha a sua origem na oração não conduz a nada. Muitas ações da minha vida não foram acompanhadas de oração e por isso acabaram em nada.
- A senhora diz que sente não ter amado bastante. Que entende exatamente por isso? A senhora tem marido e três filhos, e estou certo - basta vê-la - de que os ama muito. Em que é que a senhora pensa que lhe faltou amor?
- O senhor pode definir o amor? Pessoal­mente, creio que o amor não tem nada a ver com reações e emoções agradáveis. Olhe para o Cru­cifixo. É a negação de si mesmo, e para todo o cristão simboliza o Amor. Mas depois da Sexta-Feira Santa vem a gloriosa surpresa da Páscoa. Para toda a pessoa que se diz cristã, o amor é parte integrante de tudo isso e também parte inte­grante da sua vida.
- Bem. Suponhamos que agora lhe restam dois meses de vida. Como vai preparar-se para passar este tempo? Todos os momentos estarão ensombrecidos pelo pensamento de que vai mor­rer?
- Que disparate! Isso não tem pés nem ca­beça.
- Nem tanto, porque há gente que diz: «Por que isto tinha de acontecer comigo? Deus é in­justo por fazer que isto aconteça comigo». Gos­taria, pois, de saber quais são as suas reações, como vai a senhora passar estas últimas sema­nas ou meses da sua vida.
- A vida é um dom imenso, é o maior dom que Deus nos pode fazer. E a vida da alma, a ver­dadeira vida, é eterna, não cessará com a morte do meu corpo. O meu corpo é a parte menos im­portante do meu ser. Quando o médico me disse que eu ia morrer, que era melhor que voltasse a internar-me no hospital, respondi-lhe: «Não, des­culpe; agradeço-lhe muito que me tenha dito a verdade, mas vou agarrar-me à vida, não vou voltar ao hospital». Discutimos, porque ele acha­va que eu devia voltar ao hospital para esperar ali o meu fim, e outras coisas mais... Acho que foi a Santo Inácio que, num momento em que varria um corredor, os seus noviços lhe foram perguntar o que é que faria se de repente tivesse a certeza de que o mundo acabaria dentro de dez minutos. «Continuaria a varrer este corredor», respondeu. É isto precisamente o que eu vou fazer, e não só porque amo a Deus, mas porque estou convenci­da de que Deus me ama.
- Não me fará a senhora pensar que, por sa­ber que vai morrer, não vê a pouca importância de algumas coisas e a muito grande de outras... Irá continuar simplesmente a fazer o que fazia antes de saber que vai morrer?
- Oh não! Em primeiro lugar, Deus não me permite, porque as minhas forças físicas dimi­nuem sem parar. E como não consigo orar bem, pois nunca rezei muito, voltei aos meus costumes preferidos de quando era jovem antes de casar--me. Concedo-me o privilégio de ir à missa e co­mungar todos os dias. Mesmo que não se consiga dirigir uma prece ao Senhor, sempre se pode ob­ter consolo pensando nEle. Pode-se oferecer-lhe a nossa presença, a nossa oração, que é algo que reconforta todo o dia.
- Há coisas que agora lhe parecem impor­tantes e que antes não lhe pareciam, ou, pelo contrário, há coisas que agora lhe parecem sem importância e antes lhe parecia que tinham?
- Posso dizer-lhe algumas coisas que agora me parecem importantes. Vejo muitos pais com os seus filhos. [...] Acho que os adultos estão tão absorvidos pelo lado material da vida que aca­bam por perder o contato com os seus filhos. Se refletissem por uns momentos e dissessem de si para si: «Na semana que vem talvez esteja mor­to. O importante é que o meu filho saiba que eu, seu pai, sinto amor por ele, que o acho o melhor dos rapazes», se os pais pudessem dizer a cada um dos seus filhos: «Respeito-te, estou orgulho­so de ti, amo-te», tenho a certeza de que os filhos se esforçariam por merecer o respeito de seus pais.
Outra coisa: trata-se de olhar de frente o pior que nos possa acontecer. Se damos as costas ao que nos apavora, sucumbimos ao terror; mas se fazemos frente ao que nos horroriza, ou a nature­za disso muda ou percebemos que contém algum ensinamento salutar enviado por Deus.
Estou também convencida de que não abri­mos muito lugar para Deus na nossa vida quoti­diana. Tem-me sucedido com frequência que, quando vou à igreja, digo: «Senhor, se queres que dê de comer aos que me rodeiam nesta se­mana, terás de enviar-me comida ou dinheiro». Pois bem, acredite: a minha oração sempre foi escutada.
- Se eu fizesse isso, tenho a impressão de que seria um pouco ingênuo, quase supersticioso.
- Eu penso que é preciso entregar-se a Deus antes de esgotar todos os recursos. O senhor é pai de família. E não estaria contente se o seu filho chegasse ao último extremo sem antes lhe ter pe­dido ajuda. Sendo assim, por que não se porta da mesma maneira com Deus?
- Mas então por que a senhora não espera um milagre? Por que se resigna a morrer e não se volta para Deus e lhe diz: «Meu Deus, faz um milagre, faz que me cure»?
- Todos os dias digo a Deus: «Meu Deus, morrerei quando Tu quiseres que eu morra, não quando os médicos me disserem que vou mor­rer». Penso que fazer um milagre é suspender as leis da natureza. Por que havia Deus de fazer um milagre por mim?
- E por que não?
- Se Ele quiser fazer um milagre, há de fa­zê-lo.
- E se Ele não quiser, sentir-se-á magoada?
- De maneira nenhuma.
- Acho que compreendo o que quer dizer. Quando as crianças pedem às vezes certas coi­sas, os pais compreendem perfeitamente por que o fazem, mas sabem também que não podem satisfazê-las, quer por ser impossível ou porque lhes seria prejudicial. Mas a senhora não tem um pouco a impressão de que isso é injusto e de que há às vezes isso que se podia chamar de mortes trágicas? Por exemplo, uma jovem mãe que é boa, que teme a Deus, que cumpre os seus deveres de piedade e ama Jesus, e Deus a chama a si. E outras que não se preocupam com nada, que fazem estragos por toda a parte, e vivem até os noventa anos. Não lhe parece um pouco estra­nho, um pouco injusto?
- Lamento ter de responder-lhe que tudo isso a que chamam injustiça é uma tolice. Nós não podemos arrogar-nos o direito de decidir o que é justo ou injusto. Deus é Amor, Deus é Justiça. Além disso, prefiro acolher-me mais à mise­ricórdia divina do que à sua justiça [...]. Como cristãos, nós percebemos um resplendor no hori­zonte. Este resplendor dá um sentido totalmente diferente à vida.
- Georges Harrison, um dos Beatles, disse num artigo que provavelmente retornaria ao cristianismo, porque nenhuma das outras doutri­nas que examinou lhe deu a resposta que procu­rava. O que desejaria saber é o que nós fazemos aqui em baixo, qual é o sentido da vida para os seres humanos.
- Deus criou-me e trouxe-me ao mundo para que o conheça, o ame e o sirva neste mundo, e conheça a felicidade da sua presença no outro.
- A senhora cita textualmente o catecismo.
- Ele faz parte de mim mesma.
- Procure exprimi-lo à sua maneira. Qual é o sentido da vida para os humanos?
- Quando um rapaz diz a uma moça: «Amo--te, casa-te comigo», e depois se casam, estão unidos para toda a vida. Não ficam repetindo o tempo todo: «Amo-te, amo-te». O cristianismo é assim. O senhor pertence a Cristo, a sua própria vida é um testemunho cristão; o senhor deve amar e servir a Cristo nos outros. Não chegará a isso só pelo pensamento ou pela palavra: chegará pela maneira de comportar-se. Penso que damos demasiada importância ao lado intelectual da vi­da e à ação. Mas pode-se chegar tão bem a Deus pelo amor como pelo pensamento.
- Uma última pergunta. Acho que se vai aborrecer se lhe digo isto. Tenho pensado com frequência que, quando chegar a minha vez de morrer, gostaria de abraçar pela última vez a minha mulher e os meus filhos e afastar-me com ar alegre, deixá-los e desaparecer. Tenho um plano secreto na cabeça: digo para mim que irei para um certo lugar que conheço, muito longe da minha mulher e dos meus filhos, onde haverá uns amigos a quem direi: «Venho aqui para mor­rer; quereria que cuidásseis de mim, porque eu morrerei, e a minha mulher...» A senhora ri.
- O senhor faz-me pensar num elefante. É o que fazem os elefantes quando pressentem que vão morrer.
- A senhora diz que a faço pensar num ele­fante; porque não quero ter à minha volta as pes­soas que amo quando começar a delirar ou a en­trar em coma.
- Nosso Senhor levou a sua cruz até o Cal­vário e a sua Mãe o seguiu. Era uma mulher e permaneceu ao pé da cruz enquanto o seu Filho morria nela. Ele, o Filho, aceitou isso, e não houve amor e compreensão mais perfeitos. Por que não fazermos nós o mesmo? Não podemos amar-nos também dessa maneira no Senhor?
- Então a senhora quereria ter à sua volta as pessoas que mais ama?
- Não tenho refletido muito nisso, mas sou muito feliz abandonando-me nas mãos do Se­nhor. Porque sei que posso morrer no ônibus, ro­deada de estranhos, e, sendo assim, por que me hei de preocupar com isso?
- Isto é tudo; não há nada que acrescent

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