domingo, 24 de agosto de 2014

O desconforto da modernidade



Recentemente foi publicado em um jornal carioca uma matéria da jornalista Silvia Pilz. O texto completo sai abaixo em azul. Depois vem o nosso comentário.

Saio de casa e me deparo com um morador de rua dormindo na calçada. Coloco a culpa no prefeito, no sistema ou tento me convencer de que aquilo é carma (ou karma) e que nada acontece por acaso. Nada é mais confortante que as leis do espiritismo. Trato bichos com mais carinho do que trato gente porque estou cada dia mais convencida de que o ser humano é insuportável. Levo meu filho para uma escola particular porque finjo acreditar que a educação é o futuro do país (leia-se o futuro dele), ignoro a realidade das crianças que estudam em escolas públicas. Entro no meu carro e, no trânsito, vejo um ônibus cheio de gente que vai levar mais de quatro horas para chegar em casa.
Mostro aquelas pessoas espremidas pro meu filho e digo que é por isso que ele tem que estudar, para ser "alguém" na vida e não precisar, jamais, enfrentar esse tipo de dificuldade que aqueles, os "não alguéns", sofrem. Não distribuo sopa para pobre e não me importo com o futuro dos meninos de rua. Porém, entro em desespero se notar que uma criança do meu meio universo míope se perde dos pais em um shopping ou na praia. Frequento restaurantes caros porque #eumereço sem pensar que o que estou gastando ali é a metade do salário da babá do meu herdeiro, como são chamadas as crianças em revistas que revelam informações sobre os abonados.
Trabalho 12 horas por dia. Sou uma mulher completa. Diretora executiva dentro e fora de casa. Faço as unhas toda semana, uma escova na sexta e tento me manter em forma. Sou cliente VIP da Maria Filó. Trepo sem vontade, mas trepo. Tomo Rivotril e tento escolher um caminho espiritual que me faça compreender minha insignificância. Penso em fazer trabalhos voluntários mas não encontro "tempo". Meu marido é escravo de multinacional e eu também. Adoramos metros quadrados vazios, decorados por algum arquiteto da moda e estantes repletas de livros nunca lidos.
E, depois de dois ou três chopes com as amigas, usando a hashtag #mereço, elas resolvem disparar imagens em redes sociais, porque não sabem mais viver sem aplausos (curtidas no Facebook).
Penso: Francisca, minha empregada doméstica (porque me recuso a chamar de secretária), deve estar na casa dela, em Santa Cruz, divertindo-se com o genro desempregado e os três netos que ela ainda precisa ajudar a criar, já que a filha passa o dia fora trabalhando. Francisca vive o hoje. Dá gargalhadas e se diverte com as coisas simples da vida. A casa cheia de amigos, a TV de 120 polegadas de pano de fundo, sempre no volume máximo. Porque o grande barato dessa gente simples é barulho. Os pobres são budistas, mesmo sem saber o significado disso.
Sinto vontade de ligar para um dos três aparelhos de telefone que Francisca tem e perguntar:
 - Francisca, posso passar a noite na sua casa hoje? Sambar, tomar cerveja e comer churrasquinho de gato?
Liguei e Francisca leu meus pensamentos. Quando disse que estava angustiada e cansada de tantas contradições, ela respondeu:

- Vem madame. Pega um táxi e vem brincar de ser pobre que é mais simples.

O que chama a atenção
           
Acabamos de ler o relato de uma mulher que vive aquilo que costumamos chamar simplificadamente de “Modernidade”.  O script é mais ou menos o seguinte:
            Seja você mesmo.
            Viva para realizar os seus sonhos profissionais e pessoais. Realize-se.
            Liberte-se dos tabus sexuais, moralistas e de todos os preconceitos.
E a ‘Modernidade’ nos diz: siga essa receita e você será feliz. Mas isso não transparece no texto! No lugar do paraíso encontramos a antessala do inferno! Como diz Silvia em outros textos, há um desconforto com tudo isso. Onde se errou?

Diagnóstico errado

            Silvia nos apresenta Francisca. Empregada doméstica, pobre, simples e feliz. É essa a solução? Uma solução que não temos coragem de vestir porque estamos muito apegados ao conforto material, ao consumismo, a nossa carreira? Não penso assim.
            A diretoria do blog conhece a vida dos pobres de perto há vários anos. Eles não são budistas. Não se desapegam à procura do nirvana. A maioria são cristãos que esperam em Deus. E se não tivesse essa esperança não aguentariam viver. Mais importante: a diretoria cansou de ver gente pobre com uma vida bem complicada, rolos familiares, rancores, violência, traições, invejas e todo tipo de problemas, tal como nas coberturas dos chiques. Nem todo pobre e simples é bom, nem todo pobre e simples aceita contradição.  
            O problema não está nem na pobreza, nem na simplicidade. O desconforto está em uma característica muito sutil da ‘Modernidade’: viver para si. Quem compra a proposta da tal da ‘Modernidade’ entende que não há vida pior do que a renúncia dos seus gostos, dos seus projetos, do seu tempo. Investe tudo em si próprio. Só que o ser humano é um ser-para-os-outros. É chato ter de dizer isso, mas sempre que encontramos uma pessoa feliz, feliz de verdade, reparamos que é alguém-para-os-outros.
            Podemos ter dinheiro, e ter que lidar com muitas coisas da vida urbana contemporânea, mas se entendemos que estamos servindo alguém, se entendemos que podemos tornar mais amável a vida dos demais, então podemos ser felizes em meio às contrariedades da vida cotidiana. Mas não sei se os amigos da tal da ‘Modernidade’ estão dispostos a fazer essa aposta. Só quem tenta praticar é que percebe a beleza de ser-para-os-outros.
            

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