Recentemente
foi publicado em um jornal carioca uma matéria da jornalista Silvia Pilz. O
texto completo sai abaixo em azul. Depois vem o nosso comentário.
Saio de casa e me
deparo com um morador de rua dormindo na calçada. Coloco a culpa no prefeito,
no sistema ou tento me convencer de que aquilo é carma (ou karma) e que nada
acontece por acaso. Nada é mais confortante que as leis do espiritismo. Trato
bichos com mais carinho do que trato gente porque estou cada dia mais
convencida de que o ser humano é insuportável. Levo meu filho para uma escola
particular porque finjo acreditar que a educação é o futuro do país (leia-se o
futuro dele), ignoro a realidade das crianças que estudam em escolas públicas.
Entro no meu carro e, no trânsito, vejo um ônibus cheio de gente que vai levar
mais de quatro horas para chegar em casa.
Mostro aquelas
pessoas espremidas pro meu filho e digo que é por isso que ele tem que estudar,
para ser "alguém" na vida e não precisar, jamais, enfrentar esse tipo
de dificuldade que aqueles, os "não alguéns", sofrem. Não distribuo
sopa para pobre e não me importo com o futuro dos meninos de rua. Porém, entro
em desespero se notar que uma criança do meu meio universo míope se perde dos
pais em um shopping ou na praia. Frequento restaurantes caros porque #eumereço
sem pensar que o que estou gastando ali é a metade do salário da babá do meu
herdeiro, como são chamadas as crianças em revistas que revelam informações
sobre os abonados.
Trabalho 12 horas por
dia. Sou uma mulher completa. Diretora executiva dentro e fora de casa. Faço as
unhas toda semana, uma escova na sexta e tento me manter em forma. Sou cliente
VIP da Maria Filó. Trepo sem vontade, mas trepo. Tomo Rivotril e tento escolher
um caminho espiritual que me faça compreender minha insignificância. Penso em
fazer trabalhos voluntários mas não encontro "tempo". Meu marido é
escravo de multinacional e eu também. Adoramos metros quadrados vazios,
decorados por algum arquiteto da moda e estantes repletas de livros nunca
lidos.
E, depois de dois ou
três chopes com as amigas, usando a hashtag #mereço, elas resolvem disparar
imagens em redes sociais, porque não sabem mais viver sem aplausos (curtidas no
Facebook).
Penso: Francisca,
minha empregada doméstica (porque me recuso a chamar de secretária), deve estar
na casa dela, em Santa Cruz, divertindo-se com o genro desempregado e os três
netos que ela ainda precisa ajudar a criar, já que a filha passa o dia fora
trabalhando. Francisca vive o hoje. Dá gargalhadas e se diverte com as coisas
simples da vida. A casa cheia de amigos, a TV de 120 polegadas de pano de
fundo, sempre no volume máximo. Porque o grande barato dessa gente simples é
barulho. Os pobres são budistas, mesmo sem saber o significado disso.
Sinto vontade de
ligar para um dos três aparelhos de telefone que Francisca tem e perguntar:
- Francisca, posso
passar a noite na sua casa hoje? Sambar, tomar cerveja e comer churrasquinho de
gato?
Liguei e Francisca
leu meus pensamentos. Quando disse que estava angustiada e cansada de tantas
contradições, ela respondeu:
- Vem madame. Pega um
táxi e vem brincar de ser pobre que é mais simples.
O que chama a atenção
Acabamos de ler o relato de uma
mulher que vive aquilo que costumamos chamar simplificadamente de
“Modernidade”. O script é mais ou menos
o seguinte:
Seja
você mesmo.
Viva para realizar os seus sonhos profissionais e
pessoais. Realize-se.
Liberte-se dos tabus sexuais, moralistas e de todos os
preconceitos.
E a ‘Modernidade’ nos diz: siga essa
receita e você será feliz. Mas isso não transparece no texto! No lugar do
paraíso encontramos a antessala do inferno! Como diz Silvia em outros textos,
há um desconforto com tudo isso. Onde se errou?
Diagnóstico errado
Silvia nos apresenta Francisca.
Empregada doméstica, pobre, simples e feliz. É essa a solução? Uma solução que
não temos coragem de vestir porque estamos muito apegados ao conforto material,
ao consumismo, a nossa carreira? Não penso assim.
A diretoria do blog conhece a vida
dos pobres de perto há vários anos. Eles não são budistas. Não se desapegam à
procura do nirvana. A maioria são cristãos que esperam em Deus. E se não
tivesse essa esperança não aguentariam viver. Mais importante: a diretoria
cansou de ver gente pobre com uma vida bem complicada, rolos familiares, rancores,
violência, traições, invejas e todo tipo de problemas, tal como nas coberturas
dos chiques. Nem todo pobre e simples é bom, nem todo pobre e simples aceita
contradição.
O problema não está nem na pobreza,
nem na simplicidade. O desconforto está
em uma característica muito sutil da ‘Modernidade’: viver para si. Quem
compra a proposta da tal da ‘Modernidade’ entende que não há vida pior do que a
renúncia dos seus gostos, dos seus projetos, do seu tempo. Investe tudo em si
próprio. Só que o ser humano é um ser-para-os-outros. É chato ter de dizer
isso, mas sempre que encontramos uma
pessoa feliz, feliz de verdade, reparamos que é alguém-para-os-outros.
Podemos ter dinheiro, e ter que
lidar com muitas coisas da vida urbana contemporânea, mas se entendemos que
estamos servindo alguém, se entendemos que podemos tornar mais amável a vida
dos demais, então podemos ser felizes em meio às contrariedades da vida
cotidiana. Mas não sei se os amigos da tal da ‘Modernidade’ estão dispostos a
fazer essa aposta. Só quem tenta praticar é que percebe a beleza de
ser-para-os-outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário